quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

POESIA ARTONIMA

                             POESIA ARTONIMA

Luís de Montalvor afirmou, na apresentação do número de estréia de Orfeu, que essa revista representava “um exílio dos temperamentos da arte, que a queriam como a um segredo ou tormento”. A publicação teve dois números, lançados em 1915, e reunia o grupo de vanguarda da poesia portuguesa da época: Fernando Pessoa (1888 – 1935), Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor, Ângelo de Lima (este internado em um manicômio) e Mário de Sá-Carneiro, que a financiava com as mesadas que recebia do pai, homem próspero, que viria a falir logo depois. Sá-Carneiro (1890 – 1916) foi o mais marcante interlocutor de Fernando Pessoa, mesmo depois de sua morte, um suicídio em Paris, num quarto de hotel.
A frase de Montalvor não anunciava apenas Orfeu mas, involuntariamente, tornou-se profética em relação à obra do próprio Pessoa e de seus principais heterônimos: Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Exceto por Mensagem e por alguns dos poemas escritos em inglês e publicações esparsas em locais vários, a obra de Pessoa é póstuma, um segredo que se foi revelando a partir de 1935.
Poesia (1902 – 1917), ora editado por Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine, é mais um desses segredos que vem à tona, como o primeiro volume de uma série de três “não atribuídos por Pessoa a nenhum dos seus heterônimos ou personalidades literárias”. Em complemento, as organizadoras informam: “Esta edição da poesia ortônima pessoana inclui os poemas publicados em vida pelo autor e os que foram sendo dados a conhecer pelos mais diversos editores, desde a sua morte até o ano de 2005 (com exceção de Canções de beber e Quadras, que foram objeto de publicações autônomas).” Estamos diante, em conseqüência, do primeiro volume das obras completas de Fernando Pessoa, ele mesmo e com os heterônimos, um dos gigantes da poesia mundial do século XX.

A primeira sensação que tive, ao ler o livro, foi a de que se cuidava de um caderno de anotações e rascunhos de Fernando Pessoa ante a incompletude de versos e poemas, repetitivos e ou preparatórios de outros, que se resolvem melhor em outros ainda. A sensação aguçava-se ao passar do tempo pela presença constante de um pós-simbolismo irresoluto, sobretudo nos poemas que vão até 1910, mais ou menos. O oximoro, como forma estruturante do pensamento, já estava lá. Os labirintos do Padre Vieira já estavam lá. Os simbolistas franceses Stéphane Mallarmé e Paul Verlaine já estavam lá. Percy Shelley e John Milton já estavam também lá. Os simbolistas portugueses Cesário Verde e Camilo Pessanha já estavam lá, igualmente. Mas não estavam metabolizados, até então, por Fernando Pessoa. Um exemplo, do que ora enuncio, está no poema “Dolora”: “Dantes quão ledo afectava/ Uma atroz melancolia!/ Poeta triste ser queria/ E por não chorar chorava.// Depois, tive que encontrar/ a vida rígida e má/ Triste então chorava já/ Porque tinha que chorar.// Num desolado alvoroço/ Mais que triste não me ignoro./ Hoje em dia apenas choro/ Porque já chorar não posso” (1908). Súbito, criticando, em monólogo, este poema, reparei no uso do verbo haver em seu modo coloquial “porque tinha que chorar” e lembrei-me do genial poema de Carlos Drummond de Andrade, “No Meio do Caminho” (1928): “No meio do caminho tinha uma pedra...”, no qual o brasileiro contrasta os tons altos e baixos, num minimalismo de causar inveja aos vanguardistas posteriores.


Soneto X
Fernando Pessoa

Aconteceu-me do alto do infinito
Esta vida. Através de nevoeiros,
Do meu próprio ermo ser fumos primeiros
Vim ganhando, e através estranhos ritos
De sombra e luz ocasional, e gritos
Vagos ao longe, e assomos passageiros
De saudade incógnita, luzeiros
De divino, este ser fosco e proscrito
Caiu chuva em passados que fui eu.
Houve planícies de céu baixo e neve
Nalguma cousa de alma do que é meu.
Narrei-me à sombra e não me achei sentido.
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Outrora a sua capital de olvido...
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